A tradução jurídica teve, desde a sua fundação, um peso considerável na ABC Traduções, chegando a representar 70% do seu volume de negócios.
Não sendo uma temática de abordagem linear, já lhe dedicámos, aqui no blogue, algumas reflexões. Enumeramos aqui as últimas:
– O uso de maiúsculas e minúsculas;
– Ordinais ou cardinais nos artigos.
Tradução jurídica: um pouco de história
A profissionalização desta área da tradução fica a dever muito às instituições da União Europeu (da C.E.C.A até aos nossos dias). Ainda hoje, o serviço de tradução das Instituições Europeias é o maior empregador mundial de tradutores e intérpretes, e uma boa parte dos documentos traduzidos são textos jurídicos ou normativos.
Considerada por Newmark (no início dos anos 80 do século passado) “a forma de tradução mais restritiva”, a tradução jurídica “moderna” passa a ser entendida como um processo de ações complexas nas quais o tradutor passa a ter um poder de tomada de decisão. Numa fase inicial, foi aplicado de forma restritiva o princípio da fidelidade; o tradutor seguia o mais possível a sintaxe, a terminologia e o estilo do texto de partida, só fazendo algumas “concessões” pontuais. (Šarčević 1997: 112)
Para alguns autores, a tradução jurídica é descrita como uma categoria à parte e como “o último desafio linguístico”, pois combinaria a inventividade da tradução literária e a precisão terminológica da tradução técnica. (Harvey 2002: 177)
Na obra de Susan Šarcevic “New Approach to Legal Translation”, a tradução jurídica não é vista como um simples processo de transcodificação linguística, mas antes como um ato de comunicação no mecanismo da lei. O tradutor deve ter em conta os fatores situacionais que constituem a produção e a receção dos textos paralelos dos instrumentos jurídicos. (Šarčević 1997: 24-55)
Com o advento da teoria funcionalista (1971), a tradução passa a ser vista como um “acontecimento intercultural” integrado num ato comunicacional. O tradutor passa a ser visto como um produtor que cria um novo texto com base nos fatores comunicativos de receção de cada situação, um produtor de textos independente, cujo novo texto se baseia em critérios determinados pelos recetores-alvo. (Sarcevic 2000: 2)
As etapas da tradução jurídica
Bocquet sistematiza objetivamente as etapas da tradução jurídica:
- Etapa semasiológica de descodificação do texto de partida.
- Comparação das instituições em confronto (de partida e da chegada). É uma etapa não linguística que interpela os conhecimentos gerais do tradutor sobre o seu direito nacional. É nesta etapa que se dá o essencial da transferência do sentido e uma “inflexão” do significado, isto é, uma adaptação do próprio conteúdo da mensagem a fim de a tornar percetível.
- Etapa onomasiológica. Recodificação na língua de destino. (Bocquet 2008: 13)
Problemas de terminologia jurídica
Em tradução jurídica, há 3 grandes categorias de termos:
- Os termos com equivalentes reais, semânticos;
- Os termos com equivalentes funcionais;
- Os termos “intraduzíveis”.
Vejamos mais em detalhe as 3 possibilidades:
- Se for possível, traduz-se literalmente, adicionando uma explicação do termo entre parênteses ou em nota de tradutor. Tal permite reutilizar a solução literal encontrada, em caso de repetições.
Ex.: «The Department of State is expected to…» > «Le Département d’État (le ministère américain des Affaires Étrangères) devrait…»
- Quando não existe tradução para um determinado termo, este deve ser deixado na língua de partida e explicado entre parênteses ou em nota de tradutor. Em caso de repetições frequentes do referido termo, repete-se o termo original ou a explicação (se for sucinta).
Ex.: «The statements of the Attorney-General…» > «Les déclarations de l’Attorney-General (le ministre américain de la justice)…»
- Os termos intraduzíveis. São exemplos em inglês: common law, Equity, trust, solicitor, barrister, títulos das leis, etc.
Há duas possibilidades: deixar o termo na língua de origem em itálico ou entre aspas e acrescentar uma nota explicativa no corpo do texto (“glosa”) entre parênteses ou em nota de tradutor. A explicação deve ser mais ou menos detalhada em função do destinatário. Em caso de repetições, deve ser deixado tal como está, bastando a explicação da primeira ocorrência.
No contexto do presente artigo, debruçar-me-ei sobre os ditos “equivalentes funcionais”, isto é, aqueles para os quais não existe uma correspondência rigorosa e direta, mas antes um equivalente. É o caso de títulos e nomes de instituições.
A tradução do nome das jurisdições
Traduzir o nome das jurisdições levanta o problema maior de conseguir equivalências de significado entre as duas versões linguísticas, o que muito raramente acontece.
Infelizmente, a consulta de dicionários bilingues nem sempre garante a fiabilidade das soluções encontradas e comporta mal-entendidos.
Há também o “problema” da reprodução mimética do uso de maiúsculas no nome das jurisdições, na língua de chegada (o inglês, o português ou espanhol, por exemplo, fazem mais uso das maiúsculas do que o francês), mas este tema já foi tratado num artigo acima referido.
São os “erros” de tradução de natureza semântica que aqui nos ocupam e preocupam.
Tomemos o exemplo da jurisdição francesa “Cour de cassation”, muitas vezes traduzida, abusivamente, por “Supremo Tribunal de Justiça”. Ora, se analisarmos e compararmos as competências das duas jurisdições, rapidamente concluímos que não se trata exatamente da mesma coisa:
Supremo Tribunal de Justiça | Cour de cassation |
“O Supremo Tribunal de Justiça (STJ) é o órgão superior da hierarquia dos tribunais judiciais, sem prejuízo da competência própria do Tribunal Constitucional (artigos 210.º, CRP; 31.º, L62/2013, 26.08). (…) tem competência em todo o território e compreende secções em matéria cível, em matéria penal e em matéria social, e ainda uma secção para julgamento dos recursos das deliberações do Conselho Superior da Magistratura (artigos 45.º, 43.º/1, 47.º/1/2, L62/2013, 26.08).” | « La Cour de cassation est la juridiction la plus élevée de l’ordre judiciaire français. Elle est, dans ce dernier, le pendant du Conseil d’État dans l’ordre administratif. (…) Cette Cour peut prononcer la cassation et l’annulation des décisions de justice qui sont rendues au prix d’une méconnaissance de la loi, ou à l’inverse rejeter le pourvoi, rendant définitive la décision attaquée. »
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Na verdade, a “Cour de cassation” não tem equivalente direto na organização jurisdicional portuguesa. Quanto às suas competências, tem alguns – mas só alguns – pontos comuns com o nosso Supremo Tribunal de Justiça.
Neste caso, também não optaria (embora se veja também) pelo aportuguesamento “Tribunal de Cassação”, dado que o termo comum “cassação” remete imediatamente para outro âmbito semântico (cassar = anular, tornar nulo) que pode ser perigoso.
A minha sugestão, sobretudo visando os leitores profissionais, seria a de conservar a designação da jurisdição de origem na língua de partida, remetendo para uma nota de tradutor explicativa.
Conclusões
É a cultura e a história jurídicas de cada estado que determina a sua organização jurisdicional. As competências das diferentes jurisdições estão bem longe de ter uma equivalência exato entre si.
Assim, só uma abordagem comparativista e explicativa pode fazer jus ao rigor exigido pela tradução jurídica. As traduções erróneas prejudicam a compreensão e, por conseguinte, a correta transposição de um direito para o outro. Sejamos também intérpretes do direito e, por conseguinte, intermediários o tanto quanto possível fiéis.
Bibliografia:
Bocquet, C. (2008). La Traduction Juridique, Fondement et Méthode. Bruxelas, De Boeck Université.
Harvey, M. (2002). “What’s so special about Legal Translation?” Meta : journal des traducteurs 47(2): 177-185.
Šarčević, S. (1997). New approach to legal translation, Kluwer Law Intl.
Sarcevic, S. (2000). Legal Translation and Translation Theory: a Receiver-oriented Approach. Legal translation: history, theory/ies and practice. International colloquium University of Geneva.